Paulo Martins Barata, sócio-fundador do atelier de arquitetura PROMONTORIO, em entrevista ao idealista/news sobre o agora e o futuro dos espaços.

A pandemia fez-nos repensar o modo como vivemos (dentro e fora de casa). Que futuro nos espera? A cidade vai dar lugar ao campo? A vivência do espaço público será assim tão diferente? Paulo Martins Barata, sócio-fundador do atelier de arquitetura PROMONTORIO, reconhece o impacto da Covid-19, mas não crê que as mudanças “venham a ser tão grandes” como se perspetiva. “Será um exagero imaginar que as cidades vão morrer e que passaremos a um mundo distópico pós-pandémico com a ilha Manhattan deserta”, diz, em entrevista ao idealista/news.

Admite ajustamentos nos espaços de trabalho e de convívio, principalmente no que diz respeito às rotinas do quotidiano, além de alguns “fenómenos já observáveis, como o movimento suburbano para fora das cidades”, mas considera que, em pouco tempo, “tudo acabará por estabilizar com as necessárias correções”. Uma reflexão em linha com um relatório recente sobre o futuro da vida urbana, e que mostra que, apesar das áreas periféricas ganharem uma relativa vantagem no futuro em termos de procura, por causa do teletrabalho, por exemplo, o “fim” do apetite pelas cidades é considerado um mito.

“Ao longo da história, a cidade passa por conflitos, terrorismo, bombardeamentos, revoluções, migrações, industrialização, desindustrialização e a cada um destes eventos e processos, vai sofrendo ajustamentos. Idealmente, essas mudanças não devem ser tão violentas que lhe retirem o caráter, ainda que por vezes seja inevitável. Imagine-se Roterdão no rescaldo da 2ª Grande Guerra, em que não restava pedra sobre pedra… Porém, imaginar que as repercussões da pandemia serão algo com um impacto comparável é novamente um exagero que deixará muita gente desiludida”, argumenta.

E é (também) nas cidades que mora um dos grandes desafios da arquitetura para o futuro. “Diria que a redução de emissões de CO2 na construção e as implicações que isso terá na arquitetura são o grande desafio que temos pela frente.  O “betão”, herói  e protagonista principal da arquitetura moderna, tornou-se o Mefistófeles da contemporaneidade”, refere.

Para o arquiteto, outro tema desafiante é saber se “faz sentido a produção de construção nova, num contexto de milhões de metros quadrados existentes, vazios e abandonados, quer nos centros das cidades, quer nas periferias”. “O chamado ‘adaptive re-use’ deveria levar-nos a encontrar soluções mais simples e eficazes; a premiar e incentivar quem recupera, reconstrói e reutiliza”, defende.

Nesta entrevista escrita para o idealista/news, que agora reproduzimos na íntegra, o sócio-fundador do PROMONTORIO faz um balanço dos últimos anos de atividade, dos desafios e projetos a que se dedicam, dentro e fora de Portugal, procurando refletir sobre o impacto da pandemia no redesenho do espaço futuro.

Pode falar-nos um pouco (em traços gerais) sobre a história do PROMONTORIO? Em que ano foi fundado, onde e por quem…

O PROMONTORIO foi fundado em 1990 por 4 sócios (João Luís Ferreira, João Perloiro, Paulo Perloiro e eu próprio); um pouco mais tarde juntou-se a nós o Pedro Appleton. Começámos juntos em 1983 na Escola de Belas-Artes do Porto e mais tarde transferimo-nos para a Faculdade de Arquitectura de Lisboa. O facto de estudarmos juntos, em equipa, num apartamento emprestado na Avenida E.U.A., em Lisboa, fez com que, de uma forma espontânea, o PROMONTORIO aí nascesse e este acabasse por se vir a tornar no nosso primeiro espaço.

Quais foram os principais desafios? Que balanço fazem destes anos dedicados à arquitetura?

Diria que houve dois desafios claros. O primeiro foi encontrar trabalho com escala. Parecia-nos evidente que, sendo vários sócios, teríamos que procurar projetos de dimensão, caso contrário nunca seríamos financeiramente autónomos. Parece contraditório, não é? Quem é que entrega grandes projetos a jovens arquitetos? Acabámos por encontrar um nicho de trabalho a fazer projetos de execução e acompanhamento de obras de ateliers internacionais em Portugal, numa altura de forte expansão da economia no início dos anos 90. E isso, não sendo particularmente excitante, deu-nos experiência de obra, estabilidade e a autonomia para fazermos os nossos próprios projetos.

O segundo desafio, e talvez o maior, foi manter uma prática disciplinar irrequieta e crítica, num contexto corporativo. Esse é sempre o grande desafio dos ateliers-empresa; tantas vezes começam criativos e inovadores, nos primeiros anos, e acabam tecnocráticos e desinteressantes, esgotados pelas próprias máquinas que criaram. Como permanecer crítico, criativo, atento e atual, ao longo de mais de 30 anos? Como manter a vitalidade necessária para questionar a prática e os pressupostos de cada novo projeto que chega à nossa mesa de trabalho? Diria que esse tem sido o mais difícil, mas também mais fascinante objetivo a cumprir.

Admito também que o facto de sermos vários sócios e colaboradores séniores, que trabalham num ambiente de “workshop” permanente, impede o atelier de se “burocratizar”. Revejo-nos muito em ateliers-escola como os italianos BBPR (Banfi, Belgioioso, Peressutti e Rogers), autores da torre Velasca em Milão, ou os TAC(The Architects Collaborative), um atelier notável fundado em Boston na esfera da ‘deanship’ do Walter Gropius, em Harvard.  Todas estas práticas profissionais assentavam na ideia de a arquitetura, a partir de uma certa escala, ser necessariamente um projeto coletivo, e não um ato autoral isolado. Não rejeitando de forma alguma o segundo, vejo, no aumento de complexidade da construção e nas exigências técnicas que lhe estão associadas, uma barreira cada vez maior à possibilidade de o arquiteto-autor ter obras de dimensão. Não é impossível, mas cada vez mais difícil.

Qual o vosso conceito/ abordagem?

O atelier foi fortemente influenciado pela teoria tectónica e em particular pelo pensamento crítico do Kenneth Frampton, no final da década de 90. Estive em Nova Iorque a trabalhar com ele na universidade de Columbia e mais tarde fizemos até algum trabalho e concursos em colaboração. A cultura tectónica, resultante em parte de uma releitura do regionalismo crítico, é hoje bastante questionada pelo seu pendor materialista e conservador. Mas há aspetos que continuam inegavelmente relevantes para a arquitetura, nomeadamente a sua dimensão poética.

A que tipo de projetos se dedicam?

Um atelier com cerca 70 colaboradores em Portugal tem, obviamente, que trabalhar em diferentes áreas de projeto, mas diria que, vindos de um país de turismo, e para lá das áreas genéricas —habitação, escritórios e comércio—, acabámos por nos especializar um pouco numa “arquitetura do lazer” e que, para lá dos hotéis, estrito senso, envolve tudo o que tem a ver com a vivência do espaço numa perspetiva de conforto, fruição e qualidade tectónica.  Por outro lado, e na esteira de um dos nossos heróis, o italiano Gio Ponti, gostamos da ideia de fazer não apenas a arquitetura ‘core-and-shell’, mas também aquilo que hoje vulgarmente se chama ‘interior design’, e que é algo mais que a decoração. Por isso temos internamente uma equipa de ‘interior designers’ e um sócio, o João Perloiro, muito concentrado nesta área.

Têm uma forte presença no estrangeiro. Desde Argélia, Brasil, Dubai, Egito, Suíça, EUA, Vietname, entre outros… Pode dar-nos exemplos de projetos nestes países e dizer o que explica este salto para o mercado internacional?

O maior projeto que construímos até hoje é uma torre de 66 pisos no centro de Riade, na Arábia Saudita, num total de 110.000 m2. Fizemos um edifício de usos mistos (habitação, escritório e comércio) em Lubango, no coração de África, com uma qualidade e rigor que não envergonharia um construtor em Copenhaga ou Zurique. E em Pemba, Mocambique, antiga Porto Amélia, fizemos um edifício residencial igualmente interessante. Sítios de contrastes incríveis, entre a riqueza descontrolada dos hidrocarbonetos árabes e a pobreza lancinante da África profunda. Projetar nestes contextos, e manter uma convicção crítica, é um grande desafio.

Atualmente estamos com pouquíssimo trabalho internacional, à exceção de um projeto em Abu Dhabi, nos Emiratos Árabes Unidos, e do ‘Harvard Square Theatre’, um projeto de momento suspenso, em Cambridge, Massachusetts. O facto de ficarmos muito limitados nas viagens neste período Covid, não ajudou. Por outro lado, o aumento exponencial de trabalho em Portugal também limitou a nossa disponibilidade de recursos humanos para trabalhar fora.

Qual o peso de Portugal na vossa carteira e onde é mais fácil/difícil trabalhar? Fora ou dentro do país?

A história do nosso atelier é pendular entre o trabalho em Portugal e no estrangeiro. Na grande crise de 2010, fomos para o Qatar e para África e, em menos de três anos, a nossa carteira internacional era de 95% da faturação. Hoje é o oposto.

Os projetos internacionais são por vezes mais descomprometidos, mas também muito mais volúveis. São mais difíceis de controlar do ponto de vista dos clientes e das suas motivações. No fundo, diria que é mais fácil ganhar dinheiro nos mercados internacionais, mas mais difícil fazer boa arquitetura. E no final é isso que nos move.  Em Portugal também não é fácil, mas conhecemos as regras do jogo e gerimos a energia em função delas. Porém, há que dizê-lo, o capital e os clientes são também 95% internacionais. Ou seja, até pode ser que a sociedade gestora do projeto X ou Y seja portuguesa, e até gerida por velhos clientes nossos, mas o capital é quase sempre internacional.

A pandemia fez-nos repensar o modo como vivemos (dentro e fora de casa). Fez-nos repensar os espaços. Como serão, por exemplo, as casas do futuro? Os escritórios? Os espaços de convivência social?

Há um sem número de ‘opinion-makers’ a fazer análises perspécticas do redesenho do espaço futuro. Porém, não creio que essas mudanças venham a ser tão grandes, para lá de alguns fenómenos já observáveis, como o movimento suburbano para fora das cidades (…de Manhattan para o Connecticut, por exemplo), em parte motivado pela aceleração do teletrabalho e, noutra parte, por uma redução marginal nas necessidades de espaço de escritórios com fenómenos anteriores ao Covid, como co-working. Penso que em pouco tempo tudo acabará por estabilizar com as necessárias correções, e no essencial, será um exagero imaginar que as cidades vão morrer e que passaremos a um mundo distópico pós-pandémico com a ilha Manhattan deserta…

Admito também alguns ajustamentos nos espaços de trabalho e de convívio, principalmente no que diz respeito às rotinas de vida. E sim, a perceção de que esta pode não ser a última pandemia.

As casas do futuro continuarão a ser as casas onde gostamos ou gostaríamos de viver. Não será uma bela quinta em Sintra, do século XVIII — daquelas em que o soalho range e a humidade sobe pelas paredes —, uma casa do futuro, só porque não tem ar condicionado, domótica e um ‘home-theater’? Ou um monte em Estremoz com um grande pátio agrícola e uma cerca para o gado…? O futuro, tal como o passado e o presente, será diferente para cada um.  A casa domótica, a quinta em Sintra e o monte alentejano coexistem nele.

Este momento é um ponto de viragem (também) para a arquitetura?

Acho que este é um momento histórico de viragem para a arquitetura, mas que nada tem a ver com a pandemia. Há uma nova sensibilidade crítica e estética que emergiu a partir do meio da última década e que descreveria como “meta-modernista”.  Não sendo um movimento, como foi o pós-modernismo, é uma sensibilidade inorgânica partilhada por um conjunto de jovens ateliers, localizados na sua maioria entre a Bélgica, França, Reino Unido e a Suíça, mas também em Portugal e Espanha.

Ao contrário do pós-modernismo, que foi essencialmente um projeto de crítica do moderno, o meta-modernismo estabelece uma lógica pendular entre os dois. É muito interessante, quer na filosofia, quer na arte e na arquitectura, e tem uma vitalidade que não se via há décadas.  Claramente, os minimalismos, os conceptualismos e as meta-narrativas essencialistas baseadas em formas de abstração e impulsos escultóricos, deixaram de fazer sentido para esta nova geração que nasceu já na era Airbnb, com recursos extremamente limitados, mas com grande liberdade. Acho por isso que podemos estar a atravessar um dos momentos mais criativos dos últimos 50 anos.

De que forma o Covid impactou a vossa atividade?

Conseguimos manter a atividade e a faturação em todo o confinamento e até angariação de novos projetos. Esse foi um lado positivo. Também o facto de termos equipas muito experientes, e que se conhecem bem, ajudou a manter a produtividade. O lado negativo é que não conseguimos contratar jovens arquitetos ou estagiários, porque, com o teletrabalho, a experiência de projeto em equipa fica muito limitada, bem como a capacidade de transmitir conhecimento a novos colaboradores. Ou seja, o teletrabalho na arquitetura é possível, mas, não só não é desejável, como não é sustentável a médio prazo.

Já sentiram (e sentem) mudanças ao nível da procura? No tipo de projectos requisitados?

Houve um aumento substancial de projetos turísticos e de casas fora de Lisboa. A experiência de confinamento, nalguns casos muito difícil, feita em pequenos apartamentos, fez as pessoas valorizarem mais a habitação. A casa deixa de ser um “objeto” utilitário e funcional, para passar a ser o espaço central da nossa vida. Isso levou muitas pessoas a procurar segundas habitações com uma vontade e urgência diferentes do passado.

A discussão sobre a sustentabilidade das cidades também voltou a ganhar destaque com a pandemia. Teremos de repensá-las?

A cidade é um organismo grande e complexo, construído por camadas sedimentadas ao longo de séculos, — ou até milénios, nalguns casos. Ao longo da história, a cidade passa por conflitos, terrorismo, bombardeamentos, revoluções, migrações, industrialização, desindustrialização e a cada um destes eventos e processos, vai sofrendo ajustamentos. Idealmente, essas mudanças não devem ser tão violentas que lhe retirem o carácter, ainda que por vezes seja inevitável. Imagine-se Roterdão no rescaldo da 2ª Grande Guerra, em que não restava pedra sobre pedra… Porém, imaginar que as repercussões da pandemia serão algo com um impacto comparável é novamente um exagero que deixará muita gente desiludida.

Já sentiram (e sentem) mudanças ao nível da procura? No tipo de projectos requisitados?

Houve um aumento substancial de projetos turísticos e de casas fora de Lisboa. A experiência de confinamento, nalguns casos muito difícil, feita em pequenos apartamentos, fez as pessoas valorizarem mais a habitação. A casa deixa de ser um “objeto” utilitário e funcional, para passar a ser o espaço central da nossa vida. Isso levou muitas pessoas a procurar segundas habitações com uma vontade e urgência diferentes do passado.

A discussão sobre a sustentabilidade das cidades também voltou a ganhar destaque com a pandemia. Teremos de repensá-las?

A cidade é um organismo grande e complexo, construído por camadas sedimentadas ao longo de séculos, — ou até milénios, nalguns casos. Ao longo da história, a cidade passa por conflitos, terrorismo, bombardeamentos, revoluções, migrações, industrialização, desindustrialização e a cada um destes eventos e processos, vai sofrendo ajustamentos. Idealmente, essas mudanças não devem ser tão violentas que lhe retirem o carácter, ainda que por vezes seja inevitável. Imagine-se Roterdão no rescaldo da 2ª Grande Guerra, em que não restava pedra sobre pedra… Porém, imaginar que as repercussões da pandemia serão algo com um impacto comparável é novamente um exagero que deixará muita gente desiludida.

Temos vários edifícios com a categoria BREEAM (Building Research Establishment Environmental Assessment Method), que é uma classificação voluntária de avaliação ambiental, e LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), que é o sistema equivalente americano de certificação.

Qual o grande desafio da arquitetura para o futuro?

Diria que a redução de emissões de CO2 na construção e as implicações que isso terá na arquitetura são o grande desafio que temos pela frente.  O “betão”, herói  e protagonista principal da arquitetura moderna, tornou-se o Mefistófeles da contemporaneidade.  Na Suíça, e no norte da Europa, começam a surgir os primeiros grandes edifícios em madeira; não apenas grandes em área de construção, mas com programas complexos, como hospitais, bibliotecas e laboratórios.  Surgem também os primeiros edifícios em altura com estrutura de madeira.

Outro tema desafiante é saber se faz sentido a produção de construção nova, num contexto de milhões de metros quadrados existentes, vazios e abandonados, quer nos centros das cidades, quer nas periferias… O chamado ‘adaptive re-use’ deveria levar-nos a encontrar soluções mais simples e eficazes; a premiar e incentivar quem recupera, reconstrói e reutiliza.

Fonte: https://www.idealista.pt/news/imobiliario/habitacao/2021/09/10/48835-sera-um-exagero-pensar-que-as-cidades-vao-morrer-no-pos-pandemia